O conto da Aia e o fundamentalismo político-religioso
Lançado originalmente em 1985, o romance distópico “O conto da Aia”, escrito por Margaret Atwood, conta a história de Offred, uma Aia que vive na casa de um general do alto escalão da República de Gilead, antigo Estados Unidos da América, que, após ter o seu presidente assassinado passa a ser comandado pela seita fundamentalista Gilead. A Constituição é suspensa, a imprensa fechada e o regime patriarcal imposto. Com isso, as mulheres perdem a sua autonomia, são proibidas de ler e, aos olhos do regime teocrático, possuem apenas uma função: procriar. Função esta que fica especificamente com as Aias, que passam a viver na casa de figurões do regime.
Narrado em primeira pessoa, acompanhamos o dia a dia de Offred, que tem permissão para sair apenas para fazer compras e é apenas neste momento que temos contato com o mundo exterior do regime fundamentalista. Tomamos conhecimento do Muro, onde as pessoas consideradas subversivas são expostas depois de serem enforcadas. Os tipos utilizados por Atwood são as clássicas personagens perseguidas em qualquer regime totalitário: LGBTs, que são classificados como “Traidores do Gênero”, cientistas que se recusam a trabalhar para o regime, e religiosos que não seguem os preceitos de Gilead. A partir da história contada pela Aia temos, também, conhecimento das pequenas infrações cometidas pelas figuras mais altas do regime. Por exemplo: um clube de sexo clandestino mantido pelos generais, o tráfico de cigarro (que foi proibido pelo regime) e claro, os movimentos de resistência.
Escrito há 33 anos, momento em que a América Latina se livrava de suas ditaduras militares, em que a Alemanha se unificava e que a União Soviética se aproximava de seu fim, “O conto da Aia” poderia ser pensado como um livro deslocado de sua época, mas é justamente isso que o torna um clássico da literatura recente: Margaret Atwood preconizou uma série de fatos que se tornaram realidade a partir do final do século XX, dento e fora do Ocidente. Mas, e é aqui que entra a genialidade da trama: ninguém poderia imaginar um regime teocrático nos Estados Unidos. Porém, quem aposta num futuro democrático com a ascensão de um racista à Casa Branca e do fortalecimento dos movimentos fundamentalistas e neo-fascistas estadunidense?
Uma narrativa sobre um futuro sombrio
O futuro distópico criado por Margaret Atwood já não está assim tão longe. Quando olhamos para o atual quadro político e social do Brasil nos deparamos com a ascensão de grupos fundamentalistas que poderiam muito bem estar na República de Gilead. Não esqueçamos que a principal cruzada dos fundamentalistas políticos-religiosos no Brasil é contra a comunidade LGBT e mulheres. A união da extrema direita com grupos religiosos não é uma exclusividade do Brasil, basta analisarmos o mapa de votação de Donald Trump e a recente manifestação dos neofascistas em Charlottesville, em Virgínia, onde milhares de pessoas marcharam entoando gritos homofóbicos, racistas e nazistas.
Outra aproximação que podemos fazer com a obra é a crescente militarização do Estado e claro, com seu aparato apontado para as comunidades pobres do Brasil: jovens negros morrem cotidianamente nas mãos do Estado armado. Ainda ontem também fomos informados de que uma milícia armada da extrema direita tentou tumultuar a chegada do ex-presidente Lula na Bahia; nos EUA já existem várias milícias armadas em variados cantos do país... e os exemplos poderiam se repetir sucessivamente, por exemplo, na Europa, onde partidos assumidamente neofascistas ganham cada vez mais força e espaço nos parlamentos. Ou seja, a República de Gilead não está assim tão longe de nós.
Há uma outra característica do livro “O conto da Aia” muito interessante: as personagens centrais da história, quando viviam em um regime democrático ignoravam o crescimento da seita Gilead, apenas a personagem Moira é quem vai atentar para a ameaça iminente. Os sinais vão sendo dados, mas o grupo é apenas tratado como um bando de lunáticos. Quando despertam para o que está acontecendo já era tarde, pois, as milícias teocráticas já haviam tomado o parlamento e as ruas. Esse tipo de coisa já aconteceu na história: Hitler e sua trupe foram subestimados pelos sociais democratas alemães, que o consideravam como um “excêntrico”, que não oferecia perigo algum... atualmente, o que mais escutamos é que figuras como Boslonaro e Malafaia são apenas extremistas caricatos que não oferecem perigo algum...
Abaixo, você pode conferir o trailer da série The Handsmaid Tale, adaptação do livro de Margaret Atwood: