O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu
Com título polêmico e enredo arrebatador, o texto, escrito pela dramaturga britânica Jo Clifford, dirigido por Natalia Mallo, interpretado, com maestria, pela atriz, professora e ativista Renata Carvalho e arranjado pela companhia paulista Queen Jesus Play, nos convida a conhecer uma pessoa que nos é cara desde tempos imemoriais e entender seus textos, suas histórias e suas vivências segundo ela mesma – Jesus, Rainha do Céu.
Ao longo dos 60 min de duração do monólogo, Jesus produz uma contação de textos bíblicos como “O Bom Samaritano”, “A semente de mostarda” e “A Mulher Adúltera”, e nos impele à reflexão sobre a opressão e intolerância sofridas por transgêneros e outras minorias, reiterando valores cristãos como amor, perdão e aceitação. O debate inscrito em cada cena mostra a problemática da população transgênero na sociedade que vivemos, e como estas mesmas pessoas seriam dentro dos contextos bíblicos de séculos atrás.
Desde sua primeira encenação, em de 2009 na Escócia, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu sofreu diversos boicotes e ameaças de censura. Episódio não diferente ocorreu este ano, no Festival Internacional de Londrina (Filo), causando profunda indignação à membros das comunidades católica e evangélica da referida cidade, que consideraram a encenação um ultraje e desrespeito à fé cristã. Pois bem. Durante a 19ª Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) de São Paulo, o protesto da modelo transexual Viviany Beleboni, que se vestiu como Jesus Cristo e encenou a própria crucificação rendeu inúmeras críticas nas redes sociais e ameaças de morte. No topo de sua falsa cruz, havia a seguinte mensagem: "Basta de homofobia com GLBT".
As reações, opiniões e discursos de ódio proferidos àqueles que assim ousam a subverter o cânone e usar de subterfúgios são violentas e estampam a face daqueles que erroneamente interpretam, ou o fazem ao seu gosto, o que Jesus transmitiu em suas pregações, conforme dúvida exposta pelos fariseus, no evangelho de Mateus 22:34 – 40: “Respondeu Jesus: " 'Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento'. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: 'Ame o seu próximo como a si mesmo'”.
Não contraditoriamente, o Brasil é o país mais LGBTI-fóbico do mundo. Conforme levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), um LGBT é assassinado a cada 27 horas no país. Desse total, 52% eram gays, 37% travestis, 16% lésbicas, 10% bissexuais, segundo dados de 2015. Seriam esses dados reflexo do que é exposto nas redes sociais em formato de opinião? Creio haver uma linha tênue entre a opinião e o discurso de ódio, que incita a violência física e a morte. Contra os dados não há argumento.
Exposto dados e fatos, questiono: qual a importância da analogia estabelecida entre a figura de Jesus Cristo e seus ensinamentos dentro de uma sociedade tão preconceituosa? A representatividade causa incômodo devido ao fato da figura do nazareno ser relacionada à comunidade marginalizada. Contudo, não se é recordado também que o mesmo Jesus, quando de sua passagem neste plano terreno, esteve, em todo tempo cercado de outros que, como ele, também foram marginalizados, seja por quais questão que fosse. Conforme o evangelho de João 1:11 e 12: “Ele veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, ou seja, aos que creem no seu Nome. ”
O uso da analogia para estabelecer estas relações nos apontam para uma certeza: ela importa, e simboliza, além de tudo, a resistência e a insistência na existência – a invisibilidade é um lugar que não cabe. É preciso sim verbalizar aos quatro ventos sobre as práticas de violência direcionada à população transgênero. Por fim, após sermão-celebração e última ceia compartilhada com os presentes, Jesus, Rainha do Céu se despede, nos bem-aventura:
Abençoada seja se as pessoas abusam de você ou te perseguem, pois isso significa que você está trazendo a mudança. E abençoados sejam aqueles que te perseguem também, pois o ódio é o único talento que têm, e não vale nada. E vão perder o pouco que têm. E a mudança vai acontecer de qualquer maneira. Então por que resistirmos? Por que não podemos celebrar?
Transfobia mata! Fora Temer!