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Reflexões sobre a visibilidade lésbica


(Foto: Mídia Ninja)

Reflexões sobre a Visibilidade Lésbica, Bissexual e Interseccionalidade

por Graziele Campos da Silva e Nathali Estevez Grillo

Este artigo traz uma breve reflexão sobre a experiência de participar da mobilização da XIV Caminhada Lésbica e Bissexual à luz do feminismo interseccional. Sob o slogan “O grito de resistência das lésbicas e bissexuais periféricas não será mais sufocado!”, cerca de 800 participantes caminharam no centro de São Paulo no dia 28 de maio de 2016.

Visibilidade Lésbica e um Breve Histórico da Caminhada

A I Caminhada de Lésbicas e Bissexuais do país ocorreu em 29 de agosto de 2003, mesmo ano em que se realizou, em São Paulo, o V SENALE (Seminário Nacional de Lésbicas), considerado um marco do fortalecimento da organização política de lésbicas e bissexuais no Brasil. A importância desse encontro motivou que a data fosse transformada no Dia da Visibilidade Lésbica. A revista Fórum (2015) destaca-o como um símbolo de combate à misoginia (ódio contra as mulheres). As militantes feministas declaram que muitos dos casos de violência contra lésbicas são de violência sexual, como os chamados estupros corretivos, que seguem com a lógica que coloca o homem como autoridade curativa para “resolver” um suposto desvio (ARRAES, 2015).

Embora existam muitas questões em comum relacionadas à lesbofobia, bifobia, homofobia e transfobia, os movimentos feministas defendem que há especificidades quanto às questões de gênero. Às mulheres, por exemplo, faltam informações sobre violência e prevenção de doenças. Somado a isso, no caso das lésbicas e das bissexuais há também a falta a representação na mídia e em espaços públicos – e quando interseccionamos com questões econômicas e raciais, as opressões e a invisibilidade tende a aumentar. De acordo com Adrienne Rich (2010), feminista, lésbica, professora e judia, a heterossexualidade compulsória é uma instituição política que retira o poder das mulheres, e, no caso das lésbicas, invisibiliza suas existências, criando uma escala que oscila valores que vão do desviante ao odioso. Por meio dos mecanismos de controle masculino reforçados socialmente, a condição lésbica e bissexual muitas vezes torna-se fetichizada, um produto dirigido ao prazer masculino. Isenta-se a mulher de emoções e profundidade, negando sua existência como autônoma, uma vez que confronta várias bases da heterossexualidade compulsória.

É a partir dessas questões que surgiu a Caminhada Lésbica, com o objetivo de mostrar que as mulheres lésbicas e bissexuais existem e resistem. A primeira caminhada brasileira foi inspirada nas experiências organizativas do México; estas, por sua vez, foram inspiradas nas dos Estados Unidos. Em 2005, dois anos após sua criação, a Caminhada de Lésbicas e Bissexuais passou a ser organizada pela Liga Brasileira de Lésbicas (LBL-SP), que se manteve na liderança até a Caminhada de 2013. A partir de 2014, após reflexão conjunta com diversas ativistas, a Caminhada passou a ser organizada por um coletivo plural. Diversos grupos e militantes independentes juntaram-se, formando o organizativo da Caminhada Lésbica e Bissexual. O que esses 14 anos de caminhada lésbica e bissexual indicam é que, mesmo em meio às mudanças dos organizativos e aos desafios de uma construção colaborativa e solidária, e mesmo dentro de um movimento feminista com diferentes posicionamentos em relação às reivindicações e resistências, elas estão lá, buscando uma pauta comum que represente as diversidades, tornando públicas e políticas as questões privadas, fazendo de questões individuais e invisíveis uma luta visível e coletiva.

Audre Lord, estadunidense, negra, poeta e ativista, em seu ensaio “As ferramentas do amo nunca desmontam a casa do amo” (1979), defende que, para romper com as opressões do sistema patriarcal, é necessário criar um ambiente de comunidade entre as mulheres, no qual as diferenças sejam reconhecidas e as relações sejam fortalecidas, contrariando o que foi nos ensinado:

como mulheres, temos sido ensinadas ou a ignorar nossas diferenças, ou a vê-las como causas de separação e suspeita ao invés de forças de mudança. Sem comunidade não há libertação [...]. Comunidade não deve significar uma supressão de nossas diferenças, nem a pretensão patética de que essas diferenças não existam. Aquelas de nós que ficam fora do círculo de definição de mulheres aceitáveis de nossa sociedade; aquelas de nós que foram forjadas dos cadinhos de diferença – aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas – sabem que a sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. Sobrevivência é assumir as nossas diferenças e a torná-las forças.

Redes Sociais

As redes sociais foram muito utilizadas na mobilização para a XIV Caminhada Lésbica e Bissexual, sobretudo o Facebook, no qual foram debatidos assuntos como com quem ir à passeata, onde ficar, presença de homens, incentivo à compra de bebidas e afins de mulheres, estímulo à visibilidade lésbica, Esquenta Literário (ver adiante), espaço para as mães deixarem as crianças, cultura do estupro, violência contra a mulher periférica e divulgação das reuniões prévias.

Por ser um ato que visava discutir a condição das mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais periféricas, várias reuniões prévias aconteceram em locais diversos, do centro à periferia, nas regiões Leste, Norte e Sul. Foram realizadas dez reuniões de fevereiro a maio. Os temas abordados foram as identidades T e transfobia e as políticas de localização com foco nas particularidades locais. O intuito das reuniões organizativas era que a caminhada representasse de fato as demandas das pluralidades e diversidades das mulheres.

A campanha da visibilidade lésbica foi um ponto alto no grupo do Facebook. Mulheres lésbicas e bissexuais foram convidadas a postar suas fotos segurando um cartaz com uma mensagem. A ideia da campanha era desmistificar que só podem ser lésbicas e bissexuais mulheres da elite branca, fazendo uma crítica à falta de representatividade de mulheres de outras classes sociais e raças nas mídias de massa. Houve bastante aderência à campanha. A discussão sobre a presença ou não de homens na Caminhada apareceu diversas vezes. Por meio dos recortes a que tivemos acesso nas redes sociais, o posicionamento oficial da organização foi que, apesar de não terem sido convidados nem tampouco ter sido incentivada sua presença, uma vez que o protagonismo deve ser das mulheres, não seria possível impedir sua participação, considerando-se também que a rua é pública. Em um post particular, um homem questionou se homens poderiam participar da caminhada e somar na luta das mulheres lésbicas e bissexuais. A organização respondeu que, por ser um ato na rua (e, portanto, público), todas as pessoas eram bem-vindas, mas seria interessante que ele tivesse alguns cuidados, como não se colocar na linha de frente e nem carregar cartazes e bandeiras com dizeres específicos das pessoas protagonistas. Essa discussão foi um ponto de tensão entre os participantes desse grupo no Facebook. As mulheres tinham posições divididas sobre o assunto. Algumas criticaram a falta de um posicionamento mais enfático da organização, argumentando que o ato era uma demanda das mulheres lésbicas e bissexuais e que não se sentiam seguras com homens na Caminhada. Outras, por exemplo, argumentaram que gostariam de ir acompanhadas, visto que a volta para casa poderia ser perigosa. A Caminhada Antes da concentração, a Caminhada de Lésbicas e Bissexuais contou com um “Esquenta Literário” no Museu da Diversidade (localizado na estação de metrô República), em que livros infantis sobre diversidade sexual e de gênero foram lançados e comercializados.

O percurso iniciou-se no Largo do Paissandu e terminou com diversos shows no Largo do Arouche. Os cartazes e palavras de ordem traziam referências diretas e indiretas à atual situação política do Brasil. Menções ao afastamento de Michel Temer e Eduardo Cunha foram feitas a todo momento.

A organização do encontro disponibilizou, por meio de parcerias com coletivos, uma creche próxima ao trajeto do ato para as filhas e os filhos das mulheres participantes. Em visita a esse espaço antes de as crianças começarem a chegar, pudemos conversar com as monitoras e constatar que o ambiente estava preparado para realizar diversas atividades e servir um lanche para as crianças.

Quanto à participação de homens, apesar de esta ter sido motivo de tensão nas discussões prévias e a despeito dos cartazes e faixas com dizeres como “Homens mortos não estupram”, nenhuma hostilidade em relação a eles foi observada por nós durante a caminhada.

Um dos eixos norteadores do ato, a cultura do estupro, foi evocado com casos recentes: uma adolescente estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro e outra jovem que também sofreu estupro coletivo em uma cidade pequena do Piauí e acabou por vir a óbito. Gritos e cartazes que pediam o fim da cultura do estupro e clamavam pelo ensino sobre gênero e sexualidade nas escolas estiveram presentes na Caminhada, bem como uma intervenção artística sobre a cultura do estupro.

De acordo com a fala das organizadoras e das participantes do ato na cobertura midiática, este foi o primeiro ano em que interseccionalidades como raça, classe e localização geográfica foram pautas organizativas representativas no tema da Caminhada.

O termo “feminismo interseccional” foi cunhado pela jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw. Historicamente, no início da primeira onda feminista, nos anos 1920, o termo “feminismo” estava relacionado às reivindicações das mulheres brancas de classe média. As diferenças entre as mulheres passaram a ser o novo eixo articulador do feminismo contemporâneo (HIRATA, 2015, p. 62).

A periferia foi um tema central na construção do ato, por entender que as mulheres periféricas estão sujeitas a opressões menos discutidas do que as que mulheres do centro sofrem. Uma das bandeiras da Caminhada foi a memória de Luana: mulher, lésbica, negra e periférica brutalmente torturada por policiais militares em frente à própria casa no dia 8 de abril de 2016 em Ribeirão Preto e que, depois de 5 dias no hospital, veio a óbito. Faixas com a frase “Luana vive!” estiveram presentes ao longo de todo o ato. Quando a Caminhada chegou à Praça da República, a irmã de Luana fez uma fala em cima do carro de som, contando a história da morte da irmã e incentivando a cultura da denúncia, pedindo o fim do genocídio negro e fazendo forte crítica à instituição da Polícia Militar.

Audre Lord (1983) defende que “não há hierarquias de opressão” e, a partir da sua experiência, argumenta:

dentro da comunidade lésbica eu sou Negra, e dentro da comunidade Negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas Negras é uma questão lésbica e gay porque eu e centenas de outras mulheres Negras somos partes da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão Negra, porque centenas de lésbicas e homens gays são Negros. Não há hierarquias de opressão. [...] Eu sei que eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão somente. Eu não tenho como acreditar que liberdade de intolerância é direito de apenas um grupo particular. E eu não posso escolher entre as frentes em que eu devo batalhar essas forças da discriminação, onde quer que elas apareçam pra me destruir.

O termo “interseccionalidade” é relativamente novo, mas sua força crítica é penetrante nos movimentos e lutas emancipatórias de mulheres. A proposta deste ato foi ir além do que já tem sido construído e pautar discussões de mulheres que muitas vezes não são representadas pelo próprio movimento feminista e LGBT – como as negras, as periféricas e as trabalhadoras, que sofrem opressões nos espaços que ocupam – buscando romper com a invisibilidade e discriminação a que estão sujeitas. Assim, estrategicamente a Caminhada recebeu a chamada: “O grito de resistência das lésbicas e bissexuais periféricas não será mais sufocado!”

Referências

ARRAES, Jarid. Visibilidade lésbica e o combate à lesbofobia. Revista Fórum. 27 ago. 2015. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2015/08/27/visibilidade-lesbica-e-o-combate-lesbofobia/>. Acesso em: 9. jun. 2016. CORREIA, Ana Paula. Mulheres da periferia em movimento: um estudo sobre outras trajetórias do feminismo. Dissertação (Mestrado) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 2015. HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social – Revista de Sociologia da Universidade São Paulo, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2015. LORD, Audre. As ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre. 1979. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-as-ferramentas-do-mestre-nunca-irao-desmantelar-a-casa-do-mestre/>. Acesso em: 29 jun. 2016. ______. Não existe hierarquia de opressão. 1983. Disponível em: <http://www.geledes. org.br/nao-existe-hierarquia-de-opressao/>. Acesso em: 29. jun. 2016. RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Tradução: Carlos Guilherme do Valle. Revista Bagoas, Natal, n. 5, p. 17-44, 2010. VIEIRA, Nênis. Dia nacional da visibilidade lésbica. Disponível em: <http://blogueirasnegras. org/2014/08/29/dia-nacional-da-visibilidade-lesbica/> Acesso em: 9 jun. 2016.


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