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45 Graus: diagonal de afetos no curta de Julia Alquéres


Foto: Giovanna Pezzo

Recentemente tive acesso ao roteiro do curta 45 Graus, que contará com a direção e o roteiro de Julia Alquéres e com o trabalho de uma potente equipe de profissionais. Sua proposta enternece pela sensibilidade e merece atenção. Resolvi escrever algumas palavras pelo que sua história suscitou em mim. Em sua página no site Catarse (https://www.catarse.me/45graus), lê-se a seguinte resenha:


“Uma mãe cis descobre que sua filha trans está muito doente e decide visitá-la, depois de muito tempo distantes. Em um leito de hospital, a encontra fragilizada, com as unhas pintadas, e rememora a cena em que a viu escondida dentro de uma geladeira, quando criança, pintando as unhas. A mãe, nesse instante, retira o esmalte das unhas da filha doente e potencializa o conflito dessa relação. O quarto fica na Praça da Sé, em um hospital ao ar livre, fato que incomoda muito a mãe, que teme olhares e atitudes das pessoas que passam por ali. Em um misto entre ficção e realidade, desenrola-se um complexo reencontro, que coloca em praça pública reflexões sobre mulheres, negritude, transexualidade, identidade e preconceito, temas muito atuais, e que encontram na arte a possibilidade de se reinventarem e se livrarem das representações do senso comum”.


De pronto se destaca a perspectiva da autora pela sensibilidade de sua abordagem: conceder alma para situações que, de outro modo, permaneceriam duramente invisibilizadas na praça de São Paulo onde tudo se mostra e nada se vê. Duas inspirações guiam as lentes e a escrita de Alquéres: a primeira é o filósofo Sousa Dias, para quem “a poesia traz o excesso do ser, o enigma do mundo, para as palavras, para que as palavras, emprestando-lhe a sua consistência ou realidade, devolvam ao mundo essa sua resistência ao dizer, essa excedência da medida da linguagem (e portanto do saber), a sua indizível enigmaticidade”. Entre a excedência e a enigmaticidade das palavras e imagens, encontramos sua segunda inspiração: a cineasta Trinh T. Minh-Ha, que recomenda “falar perto” do encontro de mãe e filha, ao invés de “falar sobre”, sob risco de mutilar ou perder o fenômeno invisível e absolutamente presente da poética.


Para tal proposta acontecer, dois registros se conectam. E do encontro de ambos, produz-se também um terceiro, instaurando uma interatividade que ativa a alma da própria praça e torna ela mesma uma personagem não-roteirizada. Na diagonal da realidade objetiva, ativam-se em nós sensibilidades invisíveis ao olhar opaco do literal – Praça da Sé como bastidor para fios comuns da relação familiar de mulheres diferentes, mãe e filha distantes e próximas, de nós inusitados que tornam a praça em hospital, o leito em exposição.


O primeiro plano que se observa é precisamente este: o registro visível da praça da Sé de uma São Paulo distópica e ferida por fronteiras de pedra e borracha. Nesta praça pública, provavelmente a mais célebre da história da cidade, aglomeram-se toda sorte de vidas abjetas que, paradoxalmente, vivenciam a margem estando no centro: vendedores ambulantes, advogados cegos, moradores de rua e fervorosos pregadores. Contudo, entranhado neste plano de pedra e carne, em meio a sua intoxicação de ângulos retos, vemos pela lente de Alquéres o registro invisível da praça da Sé: um leito de hospital, uma mulher trans negra que repousa nele com suas unhas pintadas de azul, sua mãe que de súbito a visita, uma enfermeira e objetos. O terceiro plano se dá nos afectos despertados pela interação da praça da Sé com a cena, que adquire qualidades de performance na medida em que materializa em seu centro o inusitado quarto de hospital.


No âmbito pessoal, o reencontro de mãe e filha é a princípio instável, como as idas e vindas das ondas da Iemanjá inicialmente evocada, mas se transfigura à medida que as expectativas maternais heteronormativas cedem pela mesma tenacidade das águas da orixá que abençoam a curta. Já no âmbito coletivo, o paradoxo entre mostrar e não ver é precisamente aquele das existências subalternizadas e Alquéres se utiliza dele para despertar poeticamente a percepção da invisibilidade da humanidade trans, que bem poderia se estender para todas as formas de vida consideradas menores frente a um ideal de sujeito que raramente ultrapassa os cânones masculinos, heterossexuais e brancos. As ressonâncias aqui são de Judith Butler em Vidas Precárias: as vidas que escapam do jugo normativo não importam, tornam-se desprovidas de concretude material, viram fantasmas diáfanos, tornam-se marginais e menores, nem sequer merecedoras de obituário ou lágrimas de luto.


A arte, no entanto, abre possibilidades de rompimento com este regime precário: se as vidas que não importam só encontram direito ao leito – de morte, de convalescência, de descanso – à beira do absurdo, Alquéres nos oferece com seu sensível ato surrealista o esgarçamento dessa dura camada social e, transgressivamente, insere o drama marginal da transfobia na mais importante posição central de uma cidade: seu marco zero. Dos muitos méritos de sua proposta, este é o maior: resistir por meio da sensibilidade. Em meio à interação do público, um coração volta a bater.


Aguardemos o curta, enfim, para maiores comentários.

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