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POVOS TRADICIONAIS E RESISTÊNCIA:  “Reservas Extrativistas Mandira, Quilombo Ivopurunduva e Mazagão”


Estes escritos são produtos da fusão de um encontro acadêmico temperado sutilmente com teoria e subjetividade de uma escritora amadora. Neste texto carrega-se a pretensão de convocar a reflexão-ação do leitor e leitora cujas inclinações sociais aprouver à discussão de povos e comunidades tidas como tradicionais. Além de sensibilizações tangentes a esta problemática social, busca-se estimular o ativismo efetivo por meio de ações multiplicadoras destas questões que – paradoxalmente – se apresentam tão isoladas do umbigo da civilização moderna.

As reflexões aqui imbricadas nascem a partir de uma palestra intitulada “Povos e Comunidades Tradicionais” realizada em 10/08/2016 na PUCSP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, promovida pelo NIP (Núcleo INANNA de Pesquisa) em parceria com o Instituto Socioambiental e o CNS (Conselho das Populações Extrativistas). Nesta ocasião, a partir do entendimento articulado entre evidência e experiência, nossos convidados não ocupam o lugar lacônico de uma fala passiva que serve ao ego da universidade, mas sim de protagonistas e palestrantes, como porta-vozes de uma denúncia social velada.

Mediados por Lygia Zamali Fernandes os representantes Chico Mandira, Vandir Andrade e Joaquim Belo expuseram as problemáticas deste cenário convocando o ativismo da academia e à população em geral. A denúncia de que a academia tem estado ausente neste cenário suscita reflexões interseccionalizadas em diversos eixos de discussão. Tomando tal artefato como ponto de partida posicionamo-nos como espaço aberto às construções e ações necessárias ao progresso democrático de modo que estas façam eco, a começar pelo presente relato.

Dentre muitas provocações, o debate se inicia discutindo a representação social do que se entende por “Povos Tradicionais”, perpassando pelos constructos de valores relacionados às noções ocidentais de riqueza e saúde. De maneira informal discute-se o quanto representações sociais que hierarquizam selvageria, barbárie e civilização não servem como combustível de locomoção no processo de cidadania. Mas valem como registros que revelam subjacências escamoteadas. Por exemplo, a palavra “bárbaro”, de origem greco-latina era usada pelos romanos para designar todos os povos não romanos. Com o tempo, adquire a conotação de alguém que age de forma errada, imprópria e quase não humana. Neste sentido, tais provocações remetem a academia à retomada dos conceitos de “etnocentrismo” e “relativismo cultural” na intersecção deste debate.

Ora, se o critério para civilização “avançada” é o uso da tecnologia – porque culturalmente estabeleceu-se este padrão de parâmetro na sociedade ocidental – obviamente haverá que se conceber os povos tradicionais como “atrasados”. E, consequentemente, no que tange às produções acadêmicas etnocêntricas, estas provavelmente culminarão na “fetichização” do “objeto de estudo”. De modo que este sempre aparecerá legitimado à margem e na prepotência de institucionalizar “quem inventou a roda” por meio de programas de capacitações pautados em lógicas institucionalizadoras politicamente equivocadas. Mas e se o critério para civilização “avançada” for o de menor prejuízo socioambiental? Ou seja, o de menor desmatamentos e esgotamentos dos recursos naturais? Quem seriam considerados povos “atrasados” nesta perspectiva?

O relativismo cultural faz-se importante por destrinchar um processo complexificado registrando as diferentes diferenças que – em hipótese alguma – devem ser entendidas como inferioridade. Considerar estas reflexões impulsiona a academia a reavaliar os recortes sociológicos e suas imbricações no que tange às diversas dimensões das configurações sociais – nas esferas micro e macrossociais – trazendo em seu bojo um questionamento simbolicamente proferido quanto a uma produção de conhecimento transformador e não reprodutor de desigualdades subjacentes às hierarquias de gênero, cor, raça, classe ou condição geográfica. Vale pontuar que se a academia crê numa ciência universal, muito provavelmente conceberá seus “objetos” de pesquisa como “bárbaros” e grandes outros inadequados, de maneira assistencialista e até sensacionalista – no sentido literal da etimologia, de modo a esfacelar e castrar as diversidades sociais e reproduzir padrões hegemônicos.

O aspecto militante deste texto é eticamente condensado entre as denúncias dos representantes deste encontro. Traduz-se como fator marcante presente em suas falas um convite à cidadania. Denunciar que enterram seus entes queridos repentinamente devido à malária ou que suas crianças – mais resistentes diante de tamanha negligência – precisam atravessar rios e quilômetros em balsas para chegar à uma distante escola, são apenas a ponta de um profundo iceberg multifacetado. Esses grupos têm enfrentado ataques completamente crus e despidos de respeitabilidade social. Há uma linha extremamente tênue entre 1492 e 2016 quando do cenário colonizador e colônia. As reservas extrativistas Mandira, Quilombo Ivopurunduva e Mazagão não só têm sofrido ataques categóricos da terra-de-ninguém, como também estão sob ameaça de privatização de suas terras. Há a sedução da institucionalização, cujo paralelo entre os cenários mostra-nos que o colonizador de 2016 troca os pedaços de espelhos de 1492 por garantias empregatícias e “capacitações de mão-de-obra” – para atividades que estas comunidades já desempenham autonomamente.

Nossos representantes das comunidades tradicionais registram neste encontro, a dificuldade de manter resistente um povo iludido pelos colonizadores que introjetaram escancaradamente numa massa de manobra a noção de inferioridade a partir de suas concepções etnocêntricas. A concepção de propriedade privada é incompatível com sociedades horizontais. Essas comunidades habitam essas terras há aproximadamente 300 anos, como é o caso dos quilombolas. São comunidades que preservam os recursos naturais e, em última instância, possibilitam que a civilização tenha seu tecnológico umbigo em estado confortável.

Os ataques não acontecem com hora marcada. O descaso de empresas privadas – colonizadores – traduz-se num escancaro à luz do dia. Há desde roubo das reservas naturais a descarregamento de caminhões de agrotóxicos. Os produtos que são arrancados destas terras por empresas privadas, são feitos a partir de agressivos processos químicos e são vendidos para a “população civilizada” com preços elevados à décima potência dos preços pedidos pela população tradicional.

Nossos representantes se locomovem como podem para pedir ajuda. Da Amazônia à Brasília e outros espaços como resistência e luta por seus direitos. Seriam nossos povos tradicionais mais cidadãos que a sociedade civilizada? Na esperança de despertar seu ativismo social e a compreensão de que não se trata de uma questão exclusiva destes povos, encerro este texto com uma pergunta básica: “Como se sente diante da possibilidade de o peixe sobre sua mesa ter sido roubado e – não pescado, mas assassinado – à base de química na água?”.


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