“Ele está de volta”: estado de exceção e banalização do mal
A estrutura do filme apresenta-se a nós como uma boneca russa matrioska, pois
articula uma história dentro da outra, que se entrecruzam e se integram. Um enredo de um filme,
em um contexto que vira livro best seller, para depois desdobrar-se em um filme dentro do filme.
Assim, sua dinâmica quebra a linearidade da própria história, sem apresentar rupturas bem
definidas e pronunciadas.
Estruturamos nossa interpretação do filme em duas noções específicas e
complementares: a primeira diz respeito à questão do estado de exceção em Walter Benjamin e a
segunda a banalização do mal, desenvolvida por Hannah Arendt. Estas duas dimensões
encontram-se entrecruzadas em diferentes momentos do filme. Vale lembrar que há um diálogo
entre as noções de estado de exceção benjaminiano e a própria banalização do mal arendtiano,
principalmente no que se refere ao caráter totalitário que os permeiam.
A noção de Estado de Exceção apresentada por Walter Benjamin está contida na tese
VIII do texto Sobre o Conceito de História. Os fragmentos das teses foram escritas em 1940,
antes da fuga de Benjamin da França e seu suicídio ainda em 1940. O estado de exceção consiste
na suspensão legal dos direitos e das liberdades individuais. A questão legal é muito importante
pois trata-se de uma suspensão de direitos institucionalizada na forma lei, ou seja: a instituição
de uma perspectiva totalitária para a “gestão” da política. Trata-se, portanto, de uma certa
situação limite em que o exercício da cidadania encontra-se restrito e limitado à própria tirania
da intimidade (enxugamento dos espaços públicos de debate e discussão, nos termos de Richard
Sennett em: Declínio do Homem Público).
Dentre várias cenas que percorrem o filme aquela que mais nos impactou em relação
ao estado de exceção foi exatamente o diálogo final em que “Hitler” está sendo ameaçado de
morte:
- (Savatzki) diz – “Você é um monstro.”
- (“Hitler” responde) “Sou?”
- (“Hitler” continua) “Não eram pessoas normais que escolheram
eleger alguém diferente dos outros para confiarem o destino do seu
país.”
- “Você nunca se perguntou por que as pessoas me elegeram? Porque
no fundo elas são como eu. Tem os mesmos princípios. É por isso que
você não vai atirar.”
- Savatzki atira
- (“Hitler” retorna) “Você não vai se livrar de mim, eu sou parte de
você, de todos vocês”.
Ele foi eleito porque suas propostas tinham aderência com o comportamento
conservador e autoritário de parte da população que não tinha a flexibilidade de lidar com o
diferente, com a alteridade que permitiria um descobrir-se e instituir-se como ser
sociopsicológico.
No estado de exceção as liberdades ficam restritas e aqueles que ousarem contradizer
os princípios da ordem estabelecida serão mortos impunemente, pois institucionalmente, na
forma da lei, aquele que foi eleito chamou para si a responsabilidade de decidir sobre os destinos
da nação e a vida das pessoas. Daí então a ideia, guardadas as devidas proporções, do estado de
exceção permanente, dado que para um número não menos expressivo de pessoas, os princípios
que limitam os direitos foram introjetados e incorporados como normais e inevitáveis no
contexto cotidiano.
A passagem anteriormente abordada relaciona-se diretamente com o segundo ponto
que pretendemos abordar, pois na sua essência encontra-se a banalização do mal, a naturalização
da injustiça social, ou seja tornar normal aquilo que por princípio é uma aberração, um estado de
barbárie.
Na primeira parte do filme quando “Hitler” passa a fazer uma série de enquetes com
pessoas nas mais variadas regiões da Alemanha, ele percebe uma aderência de várias pessoas ao
discurso xenofóbico, preconceituoso, étnico racial (a mistura entre alemães e raças diferentes tem
contribuído para a redução do QI dos alemães).
Encontram-se, assim, os elementos do discurso que gera aderência da população ao
líder carismático. Ele observa os problemas sócio, econômico e políticos que afetam a Alemanha
e começa a incorporá-lo em seu discurso. A começar pela própria crítica feita à TV, a qualidade
dos seus programas e o “analfabetismo político” propagado. Em sua turnê pela Alemanha,
“Hitler” percebe uma receptividade às suas ideias por parte da população por onde passa, e ao
mesmo tempo descobre os salários baixos, o desemprego, a crítica ao avanço dos muçulmanos
no país, dentre outros.
Na banalização do mal, uma ação meramente burocrática em relação à barbárie e a
naturalização do discurso conservador totalitário, percebemos a afinidade entre as propostas de
solução dos problemas na Alemanha dos anos 1930 e aquelas pensadas nos anos 2014. Um
Estado centralizador em um regime totalitário.
Por fim, alguém que se julgava verossímil é visto pelos outros como inverossímil. Na
dialética do verossímil e inverossímil, há uma reposição da forma de ser, agir e pensar que ainda
faz parte da personalidade autoritária presente em uma infinidade de pessoas. Na sociedade
capitalista moderna do século XXI “Hitler” foi reificado, ele virou uma mercadoria. Foi
incorporado ao mundo do consumo, sendo assim banalizado na dialética entre o verossímil e o
inverossímil. Neste sentido este “Hitler” que se apresenta a nós no filme pode ser considerado
como o exemplo do próprio fetiche do fetiche da mercadoria, que só poderia ser revelado por
aquela em que se acreditava louca, débil mental, a anciã, que ao ouvir a sua voz e ver o seu rosto
rememora os tempos do horror, agora banalizado pelo demais.