A importância de uma compositora trans concorrer ao Oscar
Quando no dia 14 de janeiro divulgaram as indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos ao 88º Cerimônia do Oscar, dois fatos rapidamente chamaram nossa atenção: a ausência de atrizes e atores negros entre os nomes dos prêmios de Melhores Atores e Atrizes e Melhores Atores e Atrizes coadjuvantes, e a segunda indicação de uma artista trans na história do Oscar: Antony Hegarty, atualmente conhecida como Anohni, concorrendo ao prêmio de Melhor Canção Original pela música “Manta Ray”, composta com J. Ralph para o documentário Racing Extinction. Como cada um destes fatos merece um texto próprio, escolheremos tratar o segundo deles agora.
Enquanto que a ausência de pessoas negras entre os indicados já está sendo criticada e analisada pela militância de todo o mundo e até mesmo boicotada por importantes artistas como Spike Lee, Will Smith e Jada Pinkett, até agora não vimos nada que ressaltasse a importância que representa a indicação de uma compositora trans da importância de Anohni. A cantora já havia sido galardoada com o Mercury Prize em 2005 pelo seu álbum I am a bird now, que é inspirado pela militância trans nova-iorquina, e já realizou parcerias com gente de relevância, como Lou Reed, Björk e Marina Abramovic.
Sua voz barítona é admiradíssima no mundo todo, e sua voz certamente já derreteu o gelo dos corações mais gélidos. Por isso, em um ano em que a representatividade trans também está sendo preterida pela polêmica indicação de Eddie Redmayne ao prêmio de Melhor Ator pelo filme “A Garota Dinamarquesa”, é de suma importância lembrarmos também da indicação de Anohni – não para aliviar a barra do Oscar, muito pelo contrário, mas para prestigiarmos a obra e sensibilidade de uma compositora cuja presença entre os indicados é, antes de tudo, um furo na barreira conservadora da Academia. Anohni é uma lutadora do tenso campo de visibilidades LGBT da mais famosa premiação de cinema do mundo.
Quem é Anohni?
Embora seu primeiro álbum tenha sido Antony and the Johnsons, de 2001, sua estreia mundial se deu com o álbum I am a bird now, de 2005, ganhador do prêmio Mercury Prize. A concessão do mais importante prêmio da música inglesa a uma artista como ela, por si só, já havia sido motivo de discussão. Sexualmente ambígua, seu álbum se dedicava quase que inteiramente a rememorar as primeiras vítimas da AIDS e figuras de importância para a história LGBT (como Marsha P. Johnsons, que Anohni homenageia com o nome de sua banda), e em menos de 40 minutos, com suas dez canções, Anohni embalou o ano de 2005 com algum dos depoimentos musicais mais marcantes da música dos anos 2000. Candy Darling, por exemplo, diva de Warhol, em seu leito de morte na capa, ilustra uma dos maiores temas da artista: a finitude, o reconhecimento, o abandono e a melancolia.
Seja como for, este prêmio catapultou sua fama pelo mundo. A lista de admiradores, já enorme, só fez crescer, e isto lhe rendeu desde críticas elogiosas até parcerias relevantes. Anohni já contribuiu com muitos duetos para Björk, Yoko Ono e CocoRosie, aparentemente suas parceiras de mais longa data, e faixas em álbuns de grupos como Current 93 e Hercules and Love Affair. A lista de suas colaborações musicais é verdadeiramente enorme.
Na sequência de I am a bird now, pudemos conhecer uma série de álbuns fantásticos: The Crying Light, de 2009, traz Kazuo Ohno travestido na capa, e Swanlights, de 2010, cujo encarte simplesmente é um livro com suas obras de pintura e colagem, dão continuidade à temática sexual de I am a bird now, mas dessa vez também contemplando outros assuntos de relevância, como a ecologia. Em 2013, Anohni lança seu primeiro álbum ao vivo, que conta com uma canção nova, um discurso, e versões orquestradas de canções dos álbuns anteriores.
Vale lembrar que em 2013, Anohni também lança seu manifesto artístico transecofeminista, Future Feminism, chamando as mulheres para a vida política e para as artes como uma forma de degolar o patriarcado (vejam o clipe da música Cut the World!) e compensar o mal já perpetrado no meio ambiente e na sociedade por causa de sua política dominadora e destrutiva. 2016 será o primeiro ano em que ela lançará um álbum eletrônico, intitulado Hopelessness, utilizando seu nome social Anohni, ao invés de Antony, como consta em seus álbuns anteriores e na indicação ao Oscar. Como o nome do álbum sugere (a tradução literal é desesperança), seu foco será a destruição do mundo engendrada pelo homem e as possibilidades que nos restam diante do fim.
Por que esta indicação é importante?
Em uma premiação farta de artistas brancos e cissexuais, por mais que demonstrem engajamento em questões políticas importantes, como o feminismo e o racismo, consideramos que discutir a lacuna das pessoas trans* seja fundamental. Ainda que o Oscar se trate de uma premiação claramente elitista, que mais contemple o mercado cinematográfico especificamente norte-americano, ele também trata diretamente um campo de visibilidades importante demais para o mundo ocidental para ser negligenciado: o cinema de massa, formador de cultura e de sociedade, ao mesmo tempo que espelho dela.
Do mesmo modo que não faltam atrizes e atores negros de competência no mundo, não há qualquer falta de atores e atrizes trans*. E o mesmo procede para outras modalidades de arte, considerando que foi uma mulher trans, Lana Wachowski, que dirigiu os Matrix junto a seu irmão. Este argumento vem sendo constantemente utilizado por muitos apoiadores do grupo de indicados deste ano. Contudo, entendemos que tal entendimento é meritocrático ao extremo, pois sugere uma Academia de cinema neutramente implicada nas questões interseccionais de raça, gênero e sexualidade, e pior, sugere e contribui para dissimular uma sociedade cuja transfobia não é estrutural.
A própria Anohni, em muitas de suas entrevistas e discursos, parece farta desta sutil forma de invisibilidade. Não dá mais entrevistas para quem não respeita a utilização do pronome feminino, e vem defendendo uma visão estética radicalmente feminista. Quando em Future Feminism ela compreende haver um vínculo profundo entre a natureza, os corpos e as almas - uma ordem de mundo e de existência que as mulheres mais bem compreenderiam pelas suas vivências em um mundo que as equaciona como a parte podre do humano -, Anohni está dizendo que devemos tratar as marcas identitárias que o patriarcado nos colocou para melhor nos controlar como pontos de partida, nunca como verdades absolutas. A mulher para Anohni é, antes de tudo, um estado de existência e uma guerreira, não uma demarcação biológica. A luta de Anohni, atualmente, é ecológica, pois deseja falar desde a fauna e a flora literal do mundo, em vias de extinção, até a fauna e flora de nossas sensibilidades, também desmatada por um patriarcado que devassa a exuberância da alma com sua rigidez e binaridade.
Anohni merece reconhecimento não só por sua perícia musical, por sua militância e visão de mundo. Lembrarmos de (e até torcermos por) Anohni também importa porque a concorrente anterior, Angela Morley, figurou na lista de indicados há quase 40 anos atrás, em um momento em que ainda permanecia no armário para proteger-se do conservadorismo radical da sociedade hollywoodiana; importa também porque as concorrentes trans* do Oscar nunca figuraram em outras categorias de maior visibilidade, e esta pode ser uma porta para maior representatividade, ainda que estreita; importa porque as bandeiras ecomilitantes que ela levanta são cruciais para um mundo habitável para a nossa e para as próximas gerações de pessoas; importa porque as visibilidades são armas valiosas de militância; porque sua obra é maravilhosa e viciante.
Importa porque simplesmente não lembrar ou reconhecer Anohni é repetir e contribuir a máxima heteronormativa de que alguns corpos, infelizmente, importam mais do que outros.
Confira a canção “Manta Ray”:
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